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Denise Parma é piaiuense, atualmente mora em Purmerend e representante da REBRA(Rede Brasileira de Escritoras) na Holanda. Gosta de livros, poesia e pintura. Escreve histórias infantis. Obra Publicada: O Desafio de Aileen, infanto-juvenil, Editora Scortecci, São Paulo,2004.

Resquícios de Outrora

Denise Parma

"Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer,
tudo gasta, tudo digere, tudo acaba."
(Padre Antonio Vieira - Sermões)

Sigo pela Avenida Barão de Gurguéia em direção ao Centro. À altura da Rua Climério Bento Gonçalves, a cabeça volta-se involuntariamente para a direita; através do vidro da janela do carro, colho fragmentos da árvore em frente à terceira casa, à direita da rua... continua a mesma... como se não percebesse a
passagem do tempo... Nos poucos segundos em que a vejo, percebo em suas folhas uma inclinação exagerada para baixo, como se, cabisbaixa, lamentasse sua falta.

Normalmente, àquela hora, ele estaria ali, sentado à sua sombra, em sua cadeira preferida, observando a rua... Apertava os olhos claros, atingidos pelo Glaucoma, tentando reconhecer os passantes... As sobrancelhas, grossas e grisalhas,acentuavam-lhe o ar severo, adquirido nos muitos anos na função de delegado de polícia, na Piçarra, no distrito mais conhecido como "Boca-de-pau". A cabeça grande, parecia ainda maior, devido à careca acentuada.

Engraçado... Só agora percebo o quanto sua cabeça parecia-se com a de Sócrates... Seria por isso que questionava tanto as coisas? Gostava muito de um debate: política, religião, as atualidades... Apesar do pouco estudo, fazia "doutor" calar a boca. Recebera a educação primária já adulto, depois de passar vergonha ao ter que assinar com o polegar alguns papéis dentro de um ônibus lotado... "Um moço tão bonito" dissera alguém,
"e analfabeto...". Contratou uma professora particular, aprendeu a ler e escrever.

Revoltavam-lhe as transformações apresentadas pelas tempos de hoje. "No meu tempo...", era assim que começavam suas comparações  entre os novos tempos e sua saudosa outrora..."Fui criado bebendo água de cacimba e comendo rapadura; nunca soube o que era doença. Mas, hoje em dia..." e punha-se a atacar o governo que não combatia o uso exagerado dos agrotóxicos (que pronunciava"agrotó") na lavoura.

Se o assunto era a Aids, ele tinha uma explicação: "É o resultado dessa descaração de hoje... Onde já se viu, ficarem os dois, boca a boca, lambendo um a baba do outro?... No meu tempo, não se via uma coisa dessas... Depois, pegam a reclamar de doença!"
Sobre o futebol: "É uma sem-vergonhice! Um bocado de homens feitos, podendo estar trabalhando, num trabalho de homem, estão aí... feito moleques, correndo atrás de uma bola."

"Quem sabe o segredo de Deus?" crente que não soubesse a resposta a tal pergunta, que não se desse ao trabalho de evangelizá-lo. Bêbados? Odiáva-os. Espantou muitos à bala, enquanto a vista deu... Nos últimos tempos, até puxava o revólver, por força do hábito... preenchia a abertura da porta com seu corpanzil e, de revólver em punho, gritava àquele que não se dispusse a invadir-lhe a casa. Às vezes, chegava a dar conselhos... "Um homem fica velho fumando, mas não bebendo".

A vizinhança, acostumada àquelas cenas, nem se dava mais ao trabalho de chamar a polícia. Gostava de conversar com as meninas... alegrava a cara com um sorriso maroto, amaciava a voz; às vezes, metia até a mão no bolso, dava um presentinho...

Dormia nos fundos da casa, deixava sempre aberto o portão do beco que dava para a rua, para a entrada de uma delas... Foi descoberto numa madrugada, quando ouviu-se um barulho terrível vindo lá de seu quarto... acordou a casa inteira. "Já não se fazem camas como no meu tempo" deve ter pensado, contrariado com a
situação. Andou desconfiado por uns dias, depois de ter gaguejado uma desculpa qualquer para os filhos..."Antigamente, sim, é que era bom! Eu e teu pai..." E passava a relatar-me as aventuras vividas pelos dois, seguidores do candomblé, pelos muitos terreiros teresinenses. Como ria, lembrando-se das peripécias aprontadas! Os olhos brilhavam, parecia até um menino... Oh! E como eu gostava de ouví-lo! Ganhei muitas tardes ao seu lado...

São resquícios que me chegam ligeiros, de outrora... do padrinho, sentado debaixo da árvore. Agora, restaram-me a árvore, e as lembranças...

© Denise Parma 2005

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