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Denise Parma é piaiuense, atualmente mora em Purmerend e representante da REBRA(Rede Brasileira de Escritoras) na Holanda. Gosta de livros, poesia e pintura. Escreve histórias infantis. Obra Publicada: O Desafio de Aileen, infanto-juvenil, Editora Scortecci, São Paulo,2004. 

Dançando na chuva

Denise Parma

 

- Denise!... Denise!... Je bent gek!... Je wordt ziek! - ouço-a gritar acima do barulho da chuva.

O sinal abriu-se para os pedestres. Atravessei a rua em pequenos saltos, tentando me livrar das maiores poças d'água. Ao alcançar o outro lado da rua, olhei para trás. Ela continuava lá, de pé no meio da calçada, encolhida debaixo da sombrinha, numa das mãos o casaco molhado que até pouco eu vestira. Ela acenou mais uma vez em minha direção, mostrou o casaco, balançou a sombrinha. Eu acenei de volta e segui em frente, gargalhando. Caminhei alguns minutos sem olhar para trás na esperança de que ela desistisse de ficar ali, em meio ao temporal, e fosse para casa aquecer-se, como eu lhe pedira.

Não estava nos meus planos ir visitá-la. Sequer sair de casa naquela noite com um tempo tão ruim. Mas quando o telefone tocou e ouvi sua voz perguntando se podia vir me mostrar a carta que acabara de receber, não pude dizer não. Ela é uma dessas pessoas a quem é dificil se dizer não.

A carta trazia duas notícias, uma boa e outra nem tanto. A boa dava conta de seu novo endereço. Porém, para tornar esse novo endereço oficial seria necessário sua presença no escritório da imobiliária na manhã desse mesmo dia; no entanto, recebera a carta ao cair da tarde. E agora?... O que fazer?

- Será que perdi minha casa, depois de tanto tempo de espera? - perguntou-me com os olhos marejados.

Tentei tranquilizá-la, atentando-lhe não ter sido sua falta, mas da assistente social que cuidava de seus negócios, o fato da carta ter lhe chegado tão tarde às mãos.

Perguntou-me se eu conhecia o endereço.

- Não. Não o conheço, mas posso procurá-lo no mapa da cidade.

Foi o que fizemos nos próximos minutos, sem muito sucesso. A culpa não foi nossa, mas do próprio mapa, impresso em letras de se ver com telescópio. Meus olhos já não são os mesmos de antigamente, os dela também não. Nem mesmo meus óculos foram de grande ajuda.

- Olha no teu computador.
- Ainda não tenho internet, mas sei de um internetcafé perto daqui, podemos ir andando.
- Quantos minutos?
- Uns quinze.
- Não. É muito longe.
- Já sei! Podemos procurar no mapa da vitrine da loja de computadores.
Foi o que fizemos.

Ela continuou insistindo que conhecia aquela rua, mas não lembrava precisamente onde ficava a mesma.

- Nao me parece ser muito longe daqui. Vamos procurá-la?
- Está bem. Vamos.  

O tempo ainda estava bom, a chuva que caira quase toda a tarde fizera uma pausa. A direção que tomamos ia dar ao centro. Eu ainda não conhecia muito bem aquela parte da cidade, mas ela sim e, entusiasmada, ensinou-me uma rota mais curta de chegar ao centro.

- Você precisa conhecer melhor sua cidade, andar mais, ao invés de querer ver tudo pelo computador - ralhou-me carinhosamente.

- Eu sabia que conhecia esta rua!
Seu novo endereço fica a algumas ruas por trás de sua residência atual.

A porta do prédio estava aberta e aproveitamos para dar uma olhada.

- Número 18. É aqui.

Em frente à porta do apartamento, fiquei observando-a e pude ver as emoções estampadas em seu rosto. Quanta dor, quanto medo (medo do ex-marido, medo de ser mandada de volta para seu país de origem, onde a tradição não aceita seu divórcio, nem a idade lhe permite mais cuidar de sua independência financeira), quantas noites mal dormidas, quantas súplicas...

- Deus é grande! - diz em sua língua materna.
Ela me convidou a acompanhar-lhe até a casa onde mora.
- Rapidinho. - insistiu. Parecia até brasileira, tentando dar um jeitinho.

Precisava me levantar cedo na manhã seguinte, mesmo assim, aceitei o convite apesar de já passarem das nove horas. A regra da casa ordenava que ela não recebesse visitas sem autorização.

- Mas você não é visita. E ninguém contará nada para a direção. Fica entre nós. - diz, trocando um olhar cúmplice com as duas companheiras.

Conhecia uma delas, E., que esboçou um largo sorriso, envolvendo-me num abraço afetuoso. Sinto-me feliz ao ouví-la chamar-me de minha filha. Relembro-me das palavras de minha mãe, das vezes em que me contara como encontrara muitos pais e muitas mães ao acompanhar o desmiolado do marido nas muitas andanças pelo sertão do Maranhão.

Boleiras de mão cheia, as duas deram logo um jeito de encher a mesa de guloseimas. Disse que já jantara, insisti estar muito gorda, atentei-lhes para meu novo regime: nada adiantou, tive que provar de tudo.

- Amanhã você anda um pouco mais de bicicleta, aconselharam-me.
- Pena ter terminado o vinho - disse uma delas.
- Não faz mal, assim acerto o caminho de volta pra casa - respondo em tom de brincadeira.

- Você pode dormir aqui. Há uma cama vazia.

Logo mostraram-me o quarto, a bicicleta nova, as fotos da neta, e o jumento de pelúcia.

- Meu novo marido, diz E.

Gargalhamos com prazer e a conversa ganha um tom mais apimentado.Mas festa boa dura muito pouco. É tarde. Preciso voltar para casa.

- Fica pra dormir - insistiram mais uma vez.

A chuva voltara a cair e o convite era tentandor, mas não podia aceitá-lo. Logo me arrumaram um casaco, duas vezes maior que eu. Uma delas se dispõem a me acompanhar até uma parte do caminho, pois não conheço muito bem os atalhos por ali e não tenho planos de ir parar no bosque, ali do lado. Andamos alguns minutos e ao chegarmos ao cruzamento, tirei o casaco e entreguei-o de volta. Ela não gostou da idéia.

- Você pode trazê-lo de volta amanhã.
-Não terei tempo.
- Leva pelo menos a sombrinha.
-Não, assim você vai se molhar. Vá para casa e procure se aquecer, amanhã ligo pra você. Ela continou a insistir. Dou-lhe um beijo rápido no rosto e corro em direção ao sinal.
 
A chuva me envolveu num abraço. Seus pingos grossos bateram forte contra o meu corpo, despertando algo que eu julgara há muito estar morto dentro de mim. O vento forte fez festas ao meu redor e lamentei não ter asas. Os carros na ruam pareciam borrões coloridos, movendo-se ligeiramente entre os pingos d'agua. Um ciclista passou por mim e, admirado, balançou a cabeça de dentro de sua capa de chuva. Imaginei-lhe dando a notícia em casa: "Encontrei uma doida na rua, dançando na chuva". Não importa. Sinto-me leve, solta, tenho vontade de gritar. Pena eu não ter trazido a sombrinha. Poderia usá-la em minha dança. Dança de louca livre, comemorando a liberdade de uma amiga.

© Denise Parma 2006

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