Carlos Alberto Asfora
O padrinho da Cultura Brasileira

Texto: Arnild Van de Velde
Fotos: Márcia Curvo

 

Vindas do interior, onde demonstrações de confiança à primeira vista não fazem parte das regras, as duas professoras de piano devem ter se admirado da gentileza do Ministro Carlos Alberto Asfora, Chefe de Chancelaria da Embaixada Brasileira nos Países Baixos. Tendo procurado a Embaixada, apenas em busca de informações sobre a obra de Heitor Villa-Lobos, as duas acabaram saindo dali levando emprestada a coleção particular do diplomata, de CDs relacionados à obra do genial compositor brasileiro, para que "captassem melhor o ritmo dele", como explicou o simpático  pernambucano, que está servindo na Haia pela segunda vez.

O caso das professoras holandesas ilustra bem o empenho de Asfora, em difundir a Cultura Brasileira na Holanda. Além dos discos, as duas receberam farto material para a organização de um seminário sobre Villa-Lobos - e já preparam uma segunda edição do mesmo. O contato com a Embaixada ainda lhes rendeu um convite, para que se apresentassem com um repertório baseado nas composições do autor de "As Bachianas Brasileiras ", num jantar organizado na Holanda, por certa empresa brasileira. "A Embaixada proporcionou àquelas professoras a chance de melhor conhecerem o vasto universo musical brasileiro, a partir de um interesse incipiente", lembrou ele, um aficionado por música: ouve, preferencialmente, os clássicos; mas, para tocar em seu violão e cantar, rende-se ao riquíssimo repertório da MPB, à sonoridade das  canções francesas e italianas, ao suingue das americanas e ao ritmo das latino-americanas.

Devoção

Em meio a uma rotina que inclui desde  despachos com o Embaixador Gilberto Saboia, reuniões com demais colegas e a tomada de decisões para os mais diversos setores da Chancelaria, Asfora encontra tempo para se dedicar a projetos culturais, área de sua predileção. Entre 1994 e 1997, quando da primeira fase na Embaixada,  já tomara a iniciativa de catalogar artistas brasileiros residentes na Holanda. Em 2003, ao retornar a Haia, se viu diante da oportunidade de completar o projeto de organizar o setor cultural da instituição. Tornou-se assim uma prestigiada fonte para quem, na Holanda, se interessa pelo Brasil. É citado com freqüência pela imprensa holandesa - edições de jornais e revistas, a exemplo da  National Geographic, que o destacou em matéria  sobre o chamado Brasil Holandês . Ainda por  iniciativa dele, a Embaixada vem apoiando a implementação de um centro cultural brasileiro em Amsterdã, projeto da holandesa Babette Verhoef, que envolve artistas radicados no país. Em 2006, em  associação com duas produtoras – uma brasileira e uma holandesa –  e o apoio da Prefeitura de Haia, a Embaixada Brasileira deverá levar a cabo uma ambiciosa empreitada, que transformará a cidade num "cantinho do Brasil" durante os meses do verão europeu.

Projeto Acadêmicos

A manutenção da "Cátedra de Estudos Brasileiros", na Universidade de Leiden, e a realização do "Projeto Resgate", na Holanda,  exemplificam os temas acadêmicos sob a supervisão do diplomata que, além da Europa,  já representou o Brasil na América e Ásia.  Para Leiden, a Embaixada e um grupo de empresas privadas, trazem professores brasileiros das diversas áreas de nível superior, que atuam como docentes convidados pelo período de um semestre letivo, a exemplo de Ítalo Moricone, que até o final de abril integrou o Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, daquela instituição.

O "Projeto Resgate" - para a recuperação de documentos históricos relativos ao Brasil, no continente europeu - visa disponibilizar tais dados  microfilmados, ao acesso de pesquisadores em todos os Institutos Históricos do Brasil. O  segundo volume holandês, em fase de produção, deverá sair em breve, apenas pouco mais de um ano após o lançamento do primeiro, em junho do ano passado. Na terceira semana de maio último, a apresentação da edição holandesa do livro "O Negócio do Brasil", do historiador Evaldo Cabral de Melo, estabeleceu, na opinião do diplomata, o marco para um melhor entendimento dos fatos históricos que envolvem os dois países. A seguir, trechos da entrevista que Carlos Alberto Asfora concedeu a este site, recentemente.

Avdv - É  fácil promover o Brasil e sua Cultura no exterior?

Asfora – Para quem, como eu, gosta da Cultura Brasileira, a tarefa é prazerosa. Há, porém, uma dificuldade básica, que se resume no fato de ser o Brasil extremamente desconhecido aqui na Holanda. É um país distante  e o grande vínculo que nos une - o passado histórico do chamado Brasil Holandês - também é praticamente desconhecido. Mas de alguns anos para cá, este aspecto tem melhorado, sobretudo em função do turismo em nosso país, o que, sistematicamente, vem despertando um interesse maior dos visitantes holandeses pelas mais variadas expressões culturais brasileiras. Uma vez que tenham ido ao nosso país, estes turistas, quando de volta à Holanda, procuram se inteirar das atividades ligadas ao nome do Brasil, aqui nos Países Baixos, o que, por sua vez, nos motiva a oferecer as melhores opções ao nosso alcance, seja em forma de apoio financeiro a projetos, ou ainda logístico.

Avdv - Em que termos é possível concretizar projetos?

Asfora - Dentro das possibilidades da Embaixada, procuramos atender aos pedidos que nos chegam, tanto de brasileiros residentes na Holanda, ou que estejam no Brasil, ou ainda holandeses interessados em compartilhar da nossa cultura. Neste sentido, temos dado apoio a exposições de artes plásticas - muitas das quais são inauguradas pelo embaixador ou mesmo por mim - eventos ligados à capoeira, música, fotografia, entre diversos outros. Este apoio, no entanto, nem sempre é expressado em forma de verbas, mas também simbolicamente - uma maneira de conferir a determinado acontecimento o prestígio da chancela da Embaixada Brasileira. De outro modo, atuamos como mediadores como aconteceu entre as professoras de piano e a empresa Samarco.

Avdv – Como consegue contornar as dificuldades de planejamento?

Asfora – Atuar num país onde se requer um planejamento a longo prazo, como é o caso da Holanda, é complicado. A regra, aqui, é programar qualquer coisa com anos de antecedência, enquanto nós, no Brasil, estamos acostumados a usar da improvisação e a estabelecer metas por um período não superior a doze meses. É uma diferença de mentalidade, mesmo considerando-se que nossos eventos são de pequeno e médio portes. Mas ainda assim temos conseguido realizar muito. No caso de um empreendimento de grande escala como "O Ano do Brasil na França", em vigor naquele país neste ano, a organização requer um planejamento mais elaborado que, neste caso específico, envolveu os dois países.

Avdv – O senhor dispõe de verbas exclusivas para este setor?

Asfora – Não temos um orçamento específico para promover eventos culturais e dependemos de verbas ad hoc, o que significa que cada proposta enviada pela Embaixada será aprovada – ou não – do ponto de vista financeiro, inicialmente por Brasília. A solicitação deve ser feita com antecedência e é examinada pelo Itamaraty. Além disso, a proposta deve estar de acordo com o que prevê a Política Cultural brasileira. Em outras palavras, não começamos o ano com um montante fixo para este fim. Apesar da restrição, a Embaixada tem conseguido apoiar muitas iniciativas, a exemplo da Bienal de Fotografia de Amsterdã (2004), da qual participaram dois fotógrafos – uma brasileira e um holandês – abordando temas brasileiros, como também eventos artísticos das mais diversas áreas e, por último, o projeto do centro cultural em Amsterdã, que já se desenvolve num ritmo razoável. 

Avdv – Como deve proceder o interessado ao solicitar apoio?

Asfora – A pessoa deverá se dirigir à Embaixada e apresentar seu projeto. Este será examinado por nós e então encaminhado a Brasília. Isto acontece em 90% dos casos. Os demais 10% representam projetos incompatíveis ou caros demais. De nossa parte há grande empenho em tentar viabilizar tais propostas tanto sugeridas por brasileiros como por holandeses, como aconteceu recentemente com um outro fotógrafo holandês, a quem infelizmente não pudemos ajudar, por falta dos recursos de que ele precisava.

Avdv - Como andam os preparativos  do evento "Verão 2006"?

Asfora -  A intenção é de que o evento ocorra de forma descentralizada, em toda Haia, entre os meses de junho e setembro do próximo ano, a partir de uma "sede", que será montada na Grote Kerk , a antiga catedral da cidade, adaptada como um espaço nobre para a realização de eventos artísticos e culturais. A Prefeitura da Haia já nos confirmou seu apoio e a idéia é fazer com que bares, restaurantes e lojas incluam temas brasileiros em suas ofertas.

Avdv - O senhor, em diversas ocasiões, tem chamado a atenção para o fato de que, na Holanda, pouco se conhece  sobre a passagem dos holandeses pelo Brasil. O quanto isso é relevante para a relações entre os dois dos países?

Asfora -  Parece evidente que pouco se conhece o Brasil nos Países Baixos. Não existe, obviamente, nenhuma intenção de transformar o Brasil no país mais focalizado pela imprensa ou mesmo pelo governo neerlandês. O que a Embaixada deseja é que o público holandês em geral tenha um melhor conhecimento do nosso país. Com isso, toda a gama das relações bilaterais pode se enriquecer: haverá maior turismo holandês no Brasil, a cultura brasileira ficará mais conhecida, a Holanda investirá mais no Brasil, etc. (aliás, a este respeito, é bom lembrar que os Países Baixos foram o país que mais investiu no Brasil em 2004, e tem consistentemente ocupado uma das primeiras posições nos últimos cinco anos). Eu sou de opinião que, para tornar o Brasil mais conhecido aqui, um primeiro passo seria o de valorizar o nosso passado comum. Como pernambucano, que cresceu ouvindo sempre as melhores referências ao governo de Maurício de Nassau, até hoje um símbolo de administrador eficiente e mesmo excepcional, eu sempre senti simpatia pela Holanda. Passei minha infância num bairro do Recife (Casa Forte) que está impregnado da lembrança dos tempos do Brasil Holandês. O legado artístico e científico do período nassoviano é excepcional: pinturas, mapas, fortes, estudos científicos, livros, tudo dá mostra do pioneirismo que resultou na inédita liberdade religiosa, na criação do primeiro Parlamento da América, das primeiras observações meteorológicas sistemáticas, da primeira sinagoga, do primeiro jardim zoológico, etc. Os museus, arquivos e bibliotecas, no Brasil e na Europa, estão abarrotados do legado do período de Nassau. Qualquer brasileiro comum ouviu falar de Maurício de Nassau e valoriza o chamado Brasil holandês. Então, fica difícil chegar à Holanda e perceber que as pessoas não têm a menor idéia do que isso tudo representa para o Brasil e mesmo para a própria Holanda. A própria casa que Nassau construiu na Haia com os rendimentos do açúcar de Pernambuco, e que leva seu nome ("Mauritshuis"), apesar de ser considerada como um dos melhores museus de pintura do mundo, não é associada no imaginário popular à figura histórica de João Maurício de Nassau-Siegen (personagem virtualmente desconhecido na Holanda) e o público que a visita não sabe sequer dos seus vínculos com o Brasil. Considero realmente o período de governo do Conde de Nassau no Recife como um dos momentos mais brilhantes da história colonial em todas as latitudes. Como explicar, então, que seja tão desconhecido aqui? Para combater essa ignorância, nós tentamos de várias formas chamar atenção para o período, inclusive a Embaixada conseguiu – e eu dei os primeiros passos nesse sentido, há dez anos - fazer do Diretor da Mauritshuis um amigo do Brasil, o que é um passo inicial. Sem querer me imiscuir nos temas mais controvertidos do passado colonial holandês, creio que é ponto pacífico que, como as outras potências coloniais, os Países Baixos chegaram a criar ressentimentos nas populações nativas; ora, o caso do Brasil é o oposto: muitos brasileiros chegam a considerar que, se o Brasil tivesse permanecido sob o domínio holandês, estaria muito melhor (afirmação aliás discutível). Em qualquer hipótese, creio que, para aproximar os dois países, o realce que procuramos dar ao passado comum tem tudo para servir como pano de fundo a um maior conhecimento recíproco, a uma amizade ainda maior, a uma curiosidade maior pelo país, etc.

Avdv - "O Negócio do Brasil", do historiador Evaldo Cabral de Melo, servirá então a esse propósito?

Asfora - O diplomata de carreira Evaldo Cabral de Mello é considerado um dos melhores, talvez o melhor historiador brasileiro da atualidade. Recifense, também, e pai aliás de um filho chamado João Maurício, escreveu vários livros sobre o período holandês, dos quais o mais recente foi este "O Negócio do Brasil", traduzido com competência por Catherine Barel como "De Braziliaanse Affaire" e editado pela Walburg Pers. Com sua experiência diplomática, inclusive como Embaixador, ele apresenta com brilhantismo e conhecimento de causa as negociações entre Portugal e os Países Baixos sobre o destino do Nordeste do Brasil, que havia sido conquistado pelos holandeses. É um livro especializado, denso, de grande rigor de pesquisa, que muito contribuiu para esclarecer todos os aspectos nas negociações havidas na metade para o fim do século XVII, que resultaram na volta do Brasil ao domínio português, com o pagamento de indenização por Portugal. Sua tradução para o holandês poderá contribuir para o melhor conhecimento desse período tão expressivo da nossa história comum e, conseqüentemente, aumentar o interesse neerlandês sobre o Brasil, nas universidades, nos cursos de história, e mesmo por parte do público em geral.

 

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