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Arnild Van de Velde
é de Salvador, de onde saiu há 14 anos. Antes da Holanda, morou na Escócia e na Alemanha. Dedica-se ao jornalismo, à literatura, à execução de projetos culturais e ao estudo da "Ciência da Cultura"( Kulturwissenschaft), pela Universidade de Hagen(D).

Caminho Inverso

Nesta série assinada por Arnild Van de Velde, Brasileiros na Holanda apresenta holandeses que trocaram a Holanda pelo Brasil. A entrevista de estréia é com a jornalista Marjon van Royen, correspondente da rede NOS para a América Latina.

 

"A Holanda está fechando as suas janelas"
                                           (Marjon van Royen)

 - Ponham-me num avião para o Rio.

Com o pedido acima, Marjon van Royen selou sua partida do México, país do qual foi expulsa no fim dos anos 90. A então correspondente para o jornal NRC Handelsblad tornara-se presença incômoda no país, devido a reportagens que fizera sobre a corrupção envolvendo o antigo governo mexicano. Convidada a se retirar, van Royen viu na proposta às autoridades mexicanas duas oportunidades complementares: morar no Brasil -  um acalentado sonho - e continuar fora da Holanda, de onde saiu há 21 anos.

De lá para cá, ela mudou também de emprego. Trocou o NRC pela rede NOS de rádio e TV, emissora para a qual cobre a América Latina. Providencial, a mudança  permitiu que ela continuasse no Rio de Janeiro, quando o jornal chamou-a de volta à Holanda. No Rio, a repórter fixou endereço em Santa Teresa, numa casa onde cria seis gatos mexicanos e dois cachorros brasileiros. Na vizinhança, favelas. Ali costuma jogar bilhar e tomar cerveja, com a autoconfiança de quem já cobriu uma guerra – a da Bósnia, durante quatro anos.

Socióloga por formação, descobriu-se jornalista na Itália, exercitando o que sempre pareceu-lhe muito custoso fazer: escrever. Os anos naquele país foram resumidos num dos dois livros já publicados por ela: "Itália na segunda-feira" ( Italië op maandag, 224 páginas, Nijgh & Van Dittmar, 1998) e "A noite do grito"(De nacht van schreeuw, 477 páginas, publicado na Holanda pela editora Nijgh & Van Dittmar, em 2004), este último um relato de sua passagem pelo México, temperado com um capítulo sobre o amor, no Brasil – espécie prévia do próximo título a sair do prelo - "Pingüim no Rio", cujo lançamento está previsto para 2007/2008.

Procurei Marjon depois de ouvi-la falar do Brasil na TV holandesa, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial. Encontrei-a em Amsterdã, sua cidade natal, num café à beira do Singel. Entre um e outro gole refrescante de Amstel, a conversa, tipicamente feminina, enveredou por diversos temas. Para a holandesa filha de pai indonésio, os Países Baixos têm um sistema social que assegura direitos básicos aos cidadãos, mas está "fechando suas janelas", ao endurecer a política de imigração ao país. Abaixo, o resumo de nossa conversa.

- De onde vem esse amor pelo Brasil?

- É uma relação de amor total. Quando fui expulsa do México, vivi o dia mais lindo da minha vida. Queriam me por num avião para a Holanda, mas eu falei: "Não! me botem num avião para o Rio". Assim eu cheguei com meus seis gatos mexicanos ao Brasil, sem conhecer nada…foi um sonho. Foi como num blindate: eu "tinha que" adorar o Brasil… Isso é terrível, " ter que adorar o Brasil"(risos), mas foi assim desde o primeiro momento. Eu me sinto em casa lá e a razão é única: as pessoas. Não existe um país como este, hoje em dia , onde qualquer estrangeiro é bem-vindo, europeu ou africano. As pessoas me ajudaram com a língua, orientando-me na cidade. E eu não falava nada de português.
 
-  Uma "saudade européia"  da cultura latina?
 
-Eu passei dez anos na Itália, e ali tive meu primeiro contato com a cultura latina. Venho de um família extremamente calvinista, e isso me mudou profundamente. Na verdade eu sou uma pessoa do sul do planeta e quero levar adiante a voz deste lugar. É o céu do Brasil que me protege hoje em dia.

- O que acarretou sua expulsão do México?

- Eu escrevia demais sobre corrupção e ainda havia a ditadura do PRI(sigla para Partido Revolucionário Institucional), partido que estava no poder há mais de 70 anos. Eu nunca quis ir para o México, sempre quis ir para o Brasil. Mas meu chefe, na época, falou que não, e assim tive que aceitar ir para lá. Mas agora já passou, há um governo novo e eu até já voltei ao país depois disso.

- Um exemplo de intolerância… Do tipo que parece estar se alastrando pela Holanda?

- É uma loucura total. A Holanda está se fechando e mostrando ser um dos países mais intolerantes deste planeta. Eu acho que todo este mito de que a Holanda é muito tolerante não existe. Tolerar não é aceitar. Tolerância é você, estrangeiro, ter que desculpar-se, explicar-se. Tolerância é para outro tipo de pessoa. Aceitação é outra coisa. Eu, no Brasil, sou aceita, não tolerada. A tolerância holandesa nunca foi aceitação., mas agora o lado da rejeição é muito mais forte.

- A que tipo de rejeição você se refere?

- Posso dar um exemplo: dois anos atrás, dois pedófilos holandeses tinham usado 24 meninas de Nova Friburgo, para o site pornográfico que tinham na Holanda. Um era oficial da Marinha, que sabia que ele tinha o site pornográfico. Com o pretexto de que serviriam de modelos para uma agência, eles fotografaram meninas de 12 até 17 anos, para o site. Foram para as escolas, sobretudo nas favelas, prometendo que elas poderiam ser modelos e depois, talvez, viajar para Europa, quem sabe. Pagaram um real por foto. Fizeram mais de oito mil fotos pornográficas infantis das mais terríveis – eu as vi. Esses dois foram presos no Brasil em flagrante, e sentenciados a 8 e 11 anos de prisão, mas puderam esperar a sentença em liberdade. O consulado holandês no Rio fez muita pressão sobre a Justiça brasileira, para que os dois aguardassem em liberdade, e garantiu que não havia o que temer. A Polícia Federal reteve os passaportes deles, para prevenir que escapassem. O consulado holandês emitiu então dois passaportes de emergência, com os quais eles vieram para a Holanda, fugindo da justiça brasileira com ajuda do estado holandês.
 
- Como isso foi possível?

- O estado holandês disse que tem uma lei de 1813 que fala que cada cidadão holandês tem direito ao passaporte em qualquer situação. Não há tratado de extradição entre Brasil e Holanda. Então eles estão aqui. Depois tinha uma coisa política sobre isto e o ministro Bot (Ben Bot, Ministro das Relações Exteriores) prometeu ao governo brasileiro que fariam um processo aqui. O processo terminou eles pegaram apenas 240 horas de trabalhos comunitários*. Imagina um brasileiro que está aqui e faz o mesmo com 24 meninas de Deventer. A Holanda teria explodido! Mas com meninas faveladas do Brasil, claramente, tudo isso pode acontecer. Essa é a mentalidade de hoje.

- Você mesma denunciou este episódio através do programa televisivo Zembla. Que efeito surtiu a denúncia?
 
- Cada vez é como bater num muro. Seus chefes não acham isto interessante, a política não acha isto interessante, nem a opinião pública. E a Holanda aponta como primeiro tabu ("você viu a lista dos tabus?", ela me pergunta), primeiro: fazer sexo com seus filhos, mas, claramente, com as filhas dos outros e sobretudo as filhas de um país longe como o Brasil, é tudo permitido! Isto se chama pelo menos hipocrisia. Pobres e pretos; não as filhas holandesas, mas as filhas do terceiro mundo, de gente diferente. Esta é uma das razões por que eu não quero voltar para a Holanda. E graças a Deus este país que se chama Brasil me dá uma espécie de asilo político(ri).

-   Mas você não tem medo da violência brasileira?

- A única vez que fui roubada foi aqui na Kalverstraat, aqui em Amsterdã, não no Brasil. Eu acho este medo da classe média alta brasileira um absurdo total, se você pensa que o este é um dos países mais desiguais do mundo, a violência é nada. A violência é em primeiro lugar contra os pobres das favelas e isto é tudo permitido. O fato de que tem mais mortos do que pessoas presas, significa que há a execução como método policial. Sim, são 30 mil mortos por ano. Isto é mais do que o conflito entre Israel e a Palestina. É um guerra, tem uma guerra de classes, interna, no Brasil. É um massacre. No Brasil você é discriminado por causa do seu endereço. No Brasil, se seu endereço é numa favela, você pode esquecer seus direitos de cidadão.

- Mesmo assim, a maioria dos brasileiros residentes na Holanda concorda que neste país vive-se sem pânico.
 
- A Holanda tem um controle social sufocante. De um lado é uma sociedade individualista, mas do outro você tem que se comportar como os outros pensam. Aqui na rua…cada vez que eu volto na Holanda, eu começo a falar com as pessoas na rua, no trânsito, como faço no Rio, né? Aí me lembro": estou na Holanda, aqui não posso fazer isso! Terrível, mas se você não está bem na fila, todo mundo fala. Tem um controle social assustador. Você tem que se explicar. Você pode ser diferente, mas tem que se explicar. É típico. Você conhece o metrô Nieuwmarkt? Eles fizeram um monumento para os perdedores! Esta é uma maneira de controlar as pessoas. Para mim, o monumento mais típico da Holanda. Houve lutas contra o metrô, e na estação até onde tinha mortos, faz-se uma homenagem aos perdedores. Isto é tolerância repressiva e isso é muito difícil de entender, para um estrangeiro. É pouco gezellig, para quem vem de fora, não?

- É preciso ter medo de Rita Verdonk?

-Olha, eu moro no Brasil. Se você me perguntar de ACM(o político baiano Antonio Carlos Magalhães)  eu vou saber muito mais....(risos). Antes era o Pim Fortuyn, agora é a Rita Verdonk. Uma prova de que a Holanda está fechando suas janelas. A Holanda não tem mais esperança, a Holanda só tem medo. É como um matrimônio velho entre duas pessoas que estão no sofá, dizendo: "Oh, faz frio hoje, né?" ou "temos que mudar o sofá". O Brasil é como um casal jovem e apaixonado que mora numa cabana, mas sonha em construir uma casa. É por isso que tem tanto racismo na Holanda, mas o máximo que pode acontecer aqui é que se perca um pouco deste conforto todo. Essa coisa da integração vai encontrar sossego. Meu pai era indonésio e teve muitos problemas aqui, mas eu não.

- No Brasil nós temos o PT do presidente Lula. Como você analisa o nosso país?

- O PT cometeu o erro de nunca ter tentado descobrir como seria governar sem maioria. Então eles cairam no mesmo erro que está lá há 500 anos. O Brasil é muito difícil para mudar. Você pode falar que é assistencialismo. Mas a Holanda também cresceu com o assistencialismo. Assistencialismo também se chama (re)distribuição de renda. E se ele tivesse pensado como seria o poder  com um governo de minoria, talvez tivesse errado menos.Nós aqui na Holanda temos um movimento dos trabalhadores antigo. Temos uma tradição enorme. Os holandeses são cidadãos desde o século 17. Na América Latina ainda se luta por cidadania, as pessoas não são cidadãs, são clientela de um cacique de partido. E essa é a diferença fundamental. As pessoas votam na pessoa não por suas idéias, mas pelo que se conseguirá em troca. Assim é no mundo latino todo, não só no Brasil. A Itália também é assim. Por isso, talvez mais quatro deste governo não seja assim, tão ruim.
 
- Para muitos o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deixou saudades, ele representaria melhor o Brasil...
 
-O fato de um homem que não foi à universidade, sem um dedo e que fala do jeito que ele fala ter se tornado presidente do Brasil é uma revolução cultural. Ele(FHC) foi à favela e disse, eu vi: "É muito chato também, ser rico". Claro que é chato! Quando você é pobre, ninguém vai disparar contra seu carro, nem seqüestrar seu filho, você vai ter fome. Isso é muiiiito chato.
 
- Que costumes brasileiros você adotou? Tem empregada, por exemplo?
 
-Sim, tenho. Mas nunca faço ela entrar pela porta de empregada. Pago o  triplo do salário mínimo, o que meus amigos brancos da zona sul dizem que eu não devia fazer. Eu, como holandesa, nunca teria uma empregada, mas  sou vizinha de uma favela e seria uma asociaal se não gerasse pelo menos um emprego. Eu empreguei uma mulher de 67 anos. Mas não faço unha, nem depilação. Acho muito esquisito...nisso sou bem holandesa. Não como feijão e arroz todo dia; às vezes quero a minha batata e faço o meu stampot...Isso nunca vai embora(mudar), meu gosto pelo stampot é legítimo. Eu gosto muito de feijão e arroz, mas estou muito feliz com as minhas batatas.

- Em seu próximo livro, "Pingüim no Rio", você vai relatar suas experiências no Brasil. Que saldo tira dela?

-O livro será também um livro crítico, sobretudo quanto à impossibilidade de se obter justiça no Brasil. Não se fala mais de tortura no Brasil, porque a classe média não é mais torturada. Mas há uma guerra de classes no Brasil. Eu também quero me apresentar, quero me mostrar com minha visão do Brasil com meus olhos holandeses.

- Reclamar do país em que se vive é um erro?

-Não, claro que não. Se você vive aqui, tem que falar também do que não gosta. Aliás, este é um hábito bem holandês, Kankeren, que os brasileiros precisam aprender melhor. Não só aqui, como também em casa. Lá no Brasil, por exemplo, veja como andam os motoristas de ônibus. Ninguém diz nada!

-E você anda de ônibus lá?

"Claro, sou holandesa, só sei conduzir bicicleta", diz Marjon, e gargalha.

* Os acusados de crime de pedofilia, no Brasil, não foram julgados na Holanda por estes, mas por delitos anteriores.

- 01/12/2006

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