Sylvia Steiner
O encanto da guerreira

Texto: Arnild Van de Velde
Fotos: Márcia Curvo

Ao apenas examinar o vasto currículo da brasileira Sylvia Steiner, membro do corpo de dezoito juízes do Tribunal Penal Internacional (TPI), o cidadão comum concluirá rapidamente que a escolha da mesma para o cargo foi uma conseqüência natural de sua origem – vem de uma família da classe média paulistana - associada à sua experiência no campo da Justiça, no Brasil. Imaginará, também, que ela seja uma pessoa sisuda e inacessível, daquelas que devem ser tratadas com reverência, e cuja presença leva ‘simples mortais’ a prenderem a respiração. Será, no entanto, tomado pelo assombro, ao constatar que esta capricorniana de 52 anos pouco se enquadra neste perfil clássico: é jovial e, apesar de se considerar um pouco intransigente, demonstra uma simpatia que dispersa qualquer tensão causada pela imponência de seu título. Sua elegância e bom gosto revelam a única forma de vaidade que lhe pode ser atribuída – a feminina, a qual não passa despercebida a quem observa a figura alta e esguia da juíza de traços nórdicos, filha de uma portuguesa e de um austríaco.

O porte de valquíria - como as guerreiras da mitologia escandinava são conhecidas - entretanto não se limita à aparência física de Steiner. Por trás dele, destaca-se o aspecto que legitima esta comparação: o da incansável defensora de crenças pessoais e profissionais, o que muitas vezes tem demandado da juíza determinação da mesma intensidade exigida para vencer uma batalha. “Nada ‘caiu no meu colo’, tive que lutar muito para conseguir vencer”, desabafa, derrubando a teoria de que bem-nascidos como ela não precisam se esforçar. A vontade, a perseverança e a disciplina rígida que, por exemplo, lhe permitiu estudar e, ao mesmo tempo, criar dois filhos, foram fatores que não somente impulsionaram sua carreira como também levaram-na à posição em que está hoje, no cargo mais representativo já ocupado por uma brasileira no exterior. Assim, ela inaugurou a cadeira do país naquele Tribunal. Elegeu-se logo no primeiro escrutínio, juntamente com outras cinco mulheres. Antes, participou da comissão internacional criada para estabelecer as regras de procedimento do TPI, período em que jamais suspeitou de que acabaria por compor o quadro de seus juízes – no subgrupo da América Latina e Caribe.

Direitos Humanos

Embora seja especialista em Direito Criminal, a juíza brasileira é conhecida nacional e internacionalmente por sua atuação na área dos Direitos Humanos e da prevenção da violência contra mulheres e crianças. Sua formação e mestrado pela USP foram intercalados por uma especialização em Direito Penal, pela Universidade de Brasília. Permaneceu na advocacia até 1982, quando tornou-se Procuradora da República, função que desempenhou por 13 anos. Em 1995 tornou-se Desembargadora Federal. Foi vice-presidente do Conselho Penitenciário de São Paulo, é membro-fundadora do Instituto de Ciências Criminais, como também integra a Comissão de Justiça e Paz. Aposentou-se como juíza federal da regional paulista da Corte de Apelação, para então assumir o trabalho no TPI, em 2003. É autora de vários artigos publicados em revistas especializadas em Direito e também aclamada palestrante de congressos e encontros internacionais – esta semana participa de um seminário no Peru . Entre os colegas e demais funcionários, é tida como uma pessoa extremamente amável.

Na Haia

Em março de 2004, Sylvia Steiner assumiu suas funções em duas das três câmaras de julgamento preliminar do TPI – preside, por exemplo, a terceira delas, que atualmente examina a situação da República Central Africana - em tempo integral. Isto exigiu sua mudança do Brasil para a Holanda, levando-a, pela primeira vez em caráter permanente, para fora do país. A partir de então vem se adaptando às profundas transformações em sua vida, desde a separação da família – e a saudade do único neto, que ainda não completou o primeiro ano, até a dedicação a atividades incomuns para uma mulher brasileira de sua categoria, tais como lavar a própria roupa, ou cozinhar durante a semana. Depois da fase inicial, marcada pelo desânimo causado pela vida solitária na Europa – ela vive na cidade de Haia, onde o Tribunal está sediado – descobre-se agora “até gostando” da nova situação e até mesmo sentiu “falta de casa” durante as férias de fim de ano, passadas no Brasil.

Na Holanda, apesar da vida social reduzida, aprecia poder ir ao cinema ou a um restaurante - sozinha e a pé - e até arriscaria abrir um bar brasileiro no país. Organizada, vai às compras domésticas antes de começar o dia de trabalho em seu gabinete, localizado a uma altura de mais de cinqüenta metros e de onde avista a rodovia que leva ao centro de Haia e a estação de trem de Voorburg. Lê José Saramago e Gabriel García Marques, ouve preferencialmente a velha guarda da MPB, mas seus verdadeiros ídolos são as pessoas anônimas, “desprendidas que até mesmo arriscam a vida para fazer valer a Justiça em regiões de conflito”.

Na tarde da quarta-feira, 9 de fevereiro, Sylvia Steiner e a reportagem de Brasileiros na Holanda encontraram-se na sala que a juíza ocupa no TPI, para uma entrevista que durou mais de duas horas. No bate-papo, ela contou como tem sido seu cotidiano na Holanda, das dificuldades com a comida local – é do tipo que não dispensa o trivial feijão com arroz – de sua afinidade com a vice-presidente do TPI, a costa-riquenha Elizabeth Benito, e de sua admiração pelo presidente do Tribunal, Phillippe Kirsch, um “espírito absolutamente conciliador” em momentos críticos de decisão. Steiner, a quem o sotaque paulistano confere um charme especial, demonstra vivacidade, enquanto fala de temas comuns, e profunda compaixão quando o assunto é a Justiça. Planeja, quando seu mandato de nove anos se encerrar em 2012, voltar para São Paulo e dedicar-se integralmente ao papel de avó. Nas linhas abaixo, alguns trechos da conversa com a fascinante juíza.

Avdv – Que emoção a Senhora associa à sua eleição para este Tribunal, como primeira brasileira a ocupar um cargo internacional deste porte?

Sylvia Steiner – Foram dois momentos marcantes. O primeiro, quando recebi o telefonema comunicando a escolha de meu nome como candidata brasileira– eu, que já tinha trabalhado três anos na comissão de preparação do Tribunal – cuja emoção é difícil de descrever, e o segundo, quando da eleição do lançamento da candidatura, o que me recompensou por tantos anos de trabalho. Eram 47 candidatos para apenas 18 vagas e o resultado da eleição, que foi em Nova Iorque, me deixou com uma sensação de orgulho, de que “o meu país estaria representado” no TPI. A partir daí, minha vida foi ‘virada de cabeça para baixo’: saí do convívio com a minha família e os amigos para, pela primeira vez, viver sozinha e no exterior.

Avdv – Como a família e os amigos reagiram à sua escolha?

Steiner – Ficaram bastante orgulhosos, claro! Meus dois filhos também são advogados e entenderam muito bem o que esta experiência significaria para mim. Meus amigos passaram a brincar, dizendo que a amizade com a minha pessoa seria incluída como dado em seus currículos(risos).

Avdv – A Senhora é conhecida por sua atuação na área dos Direitos Humanos e tem filhos advogados. O interesse pela carreira neste setor é hereditário?

Steiner – Não exatamente. De fato, eu sou a primeira pessoa de minha família a seguir a carreira na área do Direito. Depois de mim, agora são os meus filhos que trilham este caminho, ao lado de outros membros da família. Meus pais e minhas irmãs optaram por profissões diferentes, nos campos da Psicologia e Letras.

Avdv – Neste caso, como se desenvolveu o interesse pelos Direitos Humanos, houve alguém que lhe inspirasse?

Steiner - O interesse surgiu já no terceiro ano da Faculdade de Direito da USP, quando comecei um estágio no Departamento Jurídico do Centro Acadêmico Onze de Agosto, prestando assistência jurídica para pessoas carentes. Ali tive a oportunidade de conviver com o sofrimento alheio. Esse interesse cresceu ao longo da vida acadêmica e da experiência. Por mais horrendo que tenha sido o crime cometido, precisamos tentar ver o que agrava e o que atenua as circunstâncias em que ele ocorreu e a pessoa em questão tem direito a um julgamento justo. Eu acredito que o exame deste “perfil sofredor” do ser humano deveria fazer parte da formação da minha carreira, das Ciências Humanas. Além disso é preciso garantir que o estado não viole os direitos fundamentais do cidadão.

Avdv – A Senhora é uma pessoa compassiva? Até que ponto isso é possível em sua profissão?

Steiner – Não há como não ter compaixão. Às vezes, fazer justiça é mais importante do que aplicar a letra fria da lei. Imagine que eu lidei também com questões previdenciárias, com a aposentadoria de velhinhos que dependiam daquele dinheiro para sobreviver. Não há como evitar. Muitas vezes me senti frustrada por ter sido o ‘voto vencido’ em um julgamento, por não ter tido habilidade suficiente para convencer o restante do colegiado. Era uma sensação terrível, agravada pela minha auto- exigência, minha vontade de acertar e até uma certa inflexibilidade.

Avdv – Como resolvia essa sensação, interiormente? A Senhora é uma pessoa crente?

Steiner – Sou uma pessoa que tem muita fé e sua própria maneira de se comunicar com Deus. Sempre peço a Ele que me dê iluminação suficiente, que me guie em minhas decisões e que me conforte, quando não consigo fazer o que pretendi.

Avdv – A Senhora se diz ser uma pessoa exigente. Isso se reflete de que forma em seu trabalho?

Steiner - Eu sou uma pessoa que gosta de superar dificuldades. Não me deixo abater por elas, ou que me impeçam de atingir um objetivo. Por ser tão exigente comigo mesma, acabo sendo também com as outras pessoas. Sou do tipo que, no trabalho, por exemplo exige dedicação, disciplina, pontualidade. Tenho, contudo, melhorado bastante este aspecto da minha personalidade, me tornado mais flexível. O trabalho na comissão que preparou a instalação deste Tribunal me ajudou muito. Tenho aprendido cada vez mais a ser humilde, a entender que cada um de nós tem limites diferentes.

Avdv – A Senhora é “dura na queda”, se me permite o gracejo…

Steiner – Eu era considerada uma juíza de visão liberal, por exemplo. O negócio é que quando eu tinha absoluta convicção de uma coisa, brigava muito por ela. Mas as coisas estão mudando, apesar de o processo ser ainda muito lento. Muitas decisões de agora estão tendendo para aqueles ‘votos vencidos’ do passado. Vejo com muita alegria que os novos tempos estão demonstrando que eu não era tão visionária assim.

Avdv – Decisões judiciais, principalmente na área Criminal, que a senhora conhece bem, nem sempre são entendidas pelos envolvidos. Qual a linha que separa Justiça de Direito?

Steiner – Cada caso precisa ser analisado individualmente. O juiz não pode decidir sozinho e, para chegar a uma conclusão, muita vezes precisa da ajuda de peritos. O julgamento da opinião pública é assentado na idéia de vingança é um julgamento pela emoção, pela dor. A Justiça tem que ser mais serena, principalmente diante dos chamados crimes bárbaros, não pode agir com a emoção, precisa ater-se às provas, julgar de acordo com a lei. É esta lei, elaborada pelos representantes do povo, que diz quais penas são justas. O juiz não pode aplicar uma pena, nem menor que a mínima, nem maior que a máxima prevista. O difícil é explicar para a população como esse sistema funciona, já que para ela a idéia de tempo na prisão, por exemplo, é muito diferente do que isso representa de fato. É possível que existam algumas diferenças entre Justiça e Direito, mas a lei é o que nos guia nessas questões.

Avdv – Muitos autores desses chamados ‘crimes bárbaros’ acabam no manicômio, em vez da prisão.

Steiner – Uma pessoa que mata toda a família e depois vai dormir, não pode ser normal. Isso não quer dizer que a doença mental seja desculpa. Por outro lado, colocar um doente mental na cadeia é também uma injustiça. Essa pessoa é incapaz de entender o porquê da punição. O problema é que, lá no Brasil, por exemplo, a população acredita que isso seja um presente dado pela Justiça, que absolve o réu e determina que ele seja internado. A opinião pública acha que se trata de um erro judicial, mas é porque não sabe o que é um manicômio. As vezes é uma punição muito pior. É difícil convencer a uma mãe que perdeu um filho – não tem dor maior no mundo – de que a penalidade aplicada é coerente ou pelo menos tenta ser, pois não é possível medir seu sofrimento e tentar repará-lo com o aprisionamento do culpado em anos, até mesmo porque a idéia de tempo, na cadeia, é diferente. Em muitos casos, uma semana já é muito tempo.

Avdv – O Tribunal Penal Internacional serve a que propósito?

Steiner – O TPI é uma corte especial que tem o propósito de julgar crimes de guerra, genocídio e contra a humanidade, os chamados “Crimes contra a Paz”. Há quem pense que assuntos como Meio Ambiente e o tráfico de drogas são de nossa competência, mas não é verdade. As pessoas que podem ser julgadas aqui são aquelas acusadas de cometer esses crimes, desde que sejam nacionais dos países-parte ou que tenham cometido os mesmos nos territórios desses países. É um tribunal complementar às jurisdições nacionais. Só será acionado se o Estado em questão não tiver condições de julgar – países em situação de guerra, com o sistema judicial falido, ou onde não haja previsão de crimes de guerra, como o Brasil, por exemplo. Por isso é importante que os países assinem o Estatuto de Roma (que estabeleceu o TPI). Se o sistema nacional não funciona, nós podemos ser acionados pelo próprio país, pelo Conselho de Segurança da ONU ou pelo promotor, se respaldado por alguma denúncia (como de uma ONG, por exemplo). Neste caso ele precisa da autorização de uma das câmaras preliminares.

Avdv – Alguns países importantes não assinaram o Estatuto. Isso enfraquece o TPI?

Steiner – O objetivo deste Tribunal é ter um caráter universal. Acho que quanto mais países assinarem o Estatuto de Roma, melhor. Por outro lado, acho que essa corte já nasceu forte. Tem o apoio em peso da União Européia, dos países latino-americanos e de grande parte dos países africanos; de países fortes como o Canadá e a Austrália (o Estatuto foi assinado por 120 Estados). Portanto eu acho que a corte não está enfraquecida, ela só tem a ganhar, se os outros países acabarem aderindo a ela. Há um suporte muito grande da comunidade internacional.

Avdv – Como convivem dezoito juizes com eventuais diferenças culturais e profissionais?

Steiner – Já na preparação das regras do Estatuto para a composição da Corte ficou estabelecido que deveria haver um equilíbrio de gêneros, ou seja que cada sexo viesse a preencher o mínimo de seis vagas. Não houve reserva de quotas e essa expectativa até mesmo foi superada. Somos sete mulheres e onze homens tentando manter esse equilíbrio. O desafio de conviver com as diferenças dos diversos sistemas jurídicos, com pessoas de background diferentes já se estabelecera na comissão preparatória. Havia juízes, promotores, diplomatas….todas as regras tinham que ser decididas na base do consenso. Aqui no Tribunal não é diferente. É necessário que desenvolvamos cada vez mais a nossa capacidade de convencimento e que nos livremos daquele preconceito de achar que o nosso sistema é melhor do que o dos outros. Isso foi uma lição difícil para mim durante o trabalho da comissão, por exemplo no que diz respeito a princípios de aplicação do Direito Penal, que para mim era de um determinado jeito, e tinha que conviver com alguém do sistema de Common Law, que aplica estes princípios de uma outra maneira. Foi uma verdadeira lição de humildade. Mesmo assim, as diferenças ainda existem. 

Avdv – Essas diferenças atingem o relacionamento entre os juizes? Como funciona isso?

Steiner – Nosso relacionamento é excelente, embora ainda estejamos nos conhecendo. No primeiro ano, nos encontrávamos apenas durante as plenárias e só a partir de 2004 é que cinco das sete juízas além de alguns juízes passaram a trabalhar em tempo integral. Fora daqui, porém, não há relacionamento. Talvez, por eu ser sozinha e os outros juízes estarem acompanhados de suas famílias, tenho essa impressão. Mas os universos são diferentes e a forma de relacionamento entre juízes e juízas também. Por uma questão de afinidade de idiomas, e de background eu me dou extremamente bem com a vice-presidente, que é da Costa Rica (Elizabeth Benito). Conversamos em “portunhol”, viemos do mesmo sistema jurídico, da América Latina – e também com o juiz boliviano (René Blattmann). Algumas afinidades vão se destacando entre outras.

Avdv – Existe um “espírito apaziguador” para acalmar os ânimos quando essas diferenças se aprofundam?

Steiner – Eu acho que nós elegemos o Philippe Kirsch(canadense, presidente do TPI) justamente por essa característica dele. Ele é uma pessoa extremamente competente nessa arte da conciliação. Em questões administrativas, quando vê que duas posições estão extremamente arraigadas, toma a iniciativa de suspender a sessão, conversa com um, conversa com o outro, tenta ver se há a possibilidade de uma terceira proposta conciliatória. Eu tenho uma admiração muito grande por uma pessoa que tenha essa capacidade. Eu já teria mais dificuldade, pois sou um pouco mais teimosa, embora já esteja muito melhor hoje em dia(risos). Devido aos resquícios de minha atuação profissional anterior, às vezes fico insistindo demais nos meus pontos de vista.

Avdv – Como convive com a solidão?

Steiner – Por um lado me sinto muito bem, pois aqui posso ir a um café ou a um restaurante sozinha sem temer perigos diversos. Estou gostando demais de meu apartamento e até senti saudade de casa, quando estive no Brasil durante os feriados de fim de ano. Por outro sinto uma falta imensa de meu neto, que tem apenas sete meses. Nessas horas, recorro à internet, para pelo menos poder acompanhar, de alguma forma, seu crescimento. O clima é que é difícil e ainda estou tentando me adaptar à comida.

Avdv – A Senhora se dedica a tarefas domésticas? No Brasil, seria diferente…

Steiner - Sim, eu mesma lavo minha roupa e faço minha comida. Vou ao supermercado antes de vir trabalhar e a única coisa que não faço é passar roupa, tenho alguém que faz isso. Como eu sou uma pessoa organizada, esse aspecto não tem sido um grande problema para mim. É a primeira vez em que moro sozinha, e fazer tudo por mim mesma está sendo uma experiência de que estou gostando, acredite!


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