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Gisa Muniz é naturalde São Paulo, capital, e mora há 18 anos na Holanda. Estudou Letras em São José dos Campos, São Paulo. Fez mestrado em  Lingüística na Rijksuniversiteit Utrecht. É diretora fundadora do  instituto de línguas Talent Talen, em Utrecht onde também atua como tradutora/intérprete de holandês, inglês e português e professora de  português e inglês. Escreveu para a série PRISMA  "Portugees voor  Zelfstudie" e "Basisgrammatica Portugees", Editora Het Spectrum,  Utrecht.

 

 

 

Inconstitucionalissimamente versus hottentottententententoonstelling

Gisa Muniz

 

Recentemente li com meus alunos um texto de um dos melhores escritores brasileiros da atualidade, Luis Fernando Verissimo, em que elaborava uma teoria sobre o aparente valor intrínseco de uma palavra. De forma muito peculiar e engraçada ele vai apresentando palavras num contexto qualquer, não de acordo com o seu significado, mas com seu significado aparente, conforme seu som.

Então, tive a idéia de fazer um exercício com meus alunos. Dei-lhes palavras aleatórias e pedi que escrevessem uma redação com elas sem procurar seu significado no dicionário. Eles, baseados no que achavam que a palavra significava, escreveram seus textos. Dei uns substantivos comuns, alguns adjetivos e verbos. O resultado foi uma experiência de laboratório que explodiu, só que em risos. Pedi que todos lessem seus textos primeiro. Enquanto liam eu me segurava para não morrer de rir sozinha, mas depois, quando dei-lhes os significados das palavras, explodimos. A palavra ''seqüela'', por exemplo, que significa "sintoma ou defeito que fica depois de curadas certas doenças" entrou nas redações como "uma mocinha bonita", "um tipo de alga marinha", "seqüencia". Foi uma experiência muito interessante. Definitivamente recomendo!

Verissimo cita palavras como "sílfide" que diz sair da boca voando e "quatrilhão" que, segundo ele, você fala e tem que dar um passo para trás, senão ela cai nos seus pés. Isso me fez pensar na língua holandesa e concluir que ela praticamente só tem quatrilhões.  Não conheço nenhuma palavra em holandês que saia voando da boca. A gente fala holandês andando para trás.

Eu me lembro de que quando cheguei aqui, via as pessoas conversando fervorosamente sobre algo que eu ainda não entendia e, quando perguntava curiosa sobre o que estavam discutindo, eles diziam "sobre o tempo". Antes de aprender o holandês eu achava que tinha que aprender a bater-boca primeiro, o que não chegava a ser um problema, mas bater boca em quatrilhões era um desafio! Foi um trauma. Achava a língua ríspida, curta e grossa. Hoje vejo que ríspida e grossa ela continua, mas de curta não tem nada. As palavras se aglutinam de forma tão impressionante umas às outras que nós, estrangeiros, ficamos perdidos, não sabendo por onde começar a desmembrar esses Golias.

Não precisamos ir tão longe e pegar um "hottentottententententoonstelling", palavra que os holandeses tão orgulhosamente nos apresentam para dizer que a língua é difícil, da mesma forma que brincamos com advérbio "inconstitucionalissimamente", aliás, usado também só para dizer que a nossa língua é difícil. Com o holandês não precisamos ir tão longe, no dia-a-dia mesmo há palavras duras de roer, como "voorhoofdholteontsteking", palavra rotineira no vocabulário médico, pode acontecer com qualquer um: "voorhoofd" significa testa, "holte", cavidade e "ontsteking", inflamação. Ou seja, inflamação nas cavidades da testa: sinusite. Há muitos anos, fui ao médico achando que estava com sinusite, mas antes procurei a palavra no dicionário para explicar o que eu sentia, vi o tamanho da palavra em holandês e pensei "Voorhoofdholteontsteking?! Esquece! Vou é usar o termo latino mesmo, ele é médico, vai entender!" Quando disse acho que estou com "sinusitis", o médico me deu um sabão: "Você não precisa estudar termos latinos para vir falar comigo. Pode falar "voorhoofdholteontsteking" que todo mundo usa". Obviamente ele não entendeu nada. Achou que eu fosse elitista, sei lá! E eu vi que jamais conseguiria alcançá-lo, mesmo porque só tínhamos alguns minutos de consulta. Resignada, disse "Ok."

Muitas vezes em conversa com holandeses uso palavras muito normais para nós, arriscando, por analogia, uma versão holandesa. Quando acerto, acabo "falando difícil", como no caso de reciprocidade, "reciprociteit" em vez de "wederkerigheid". Mas às vezes acabo errando também, como no caso de "observatie" em vez de "opmerking." "Observatie" é uma observação científica, num hospital, por exemplo e "opmerking" é observação. Nem sempre é bom arriscar os termos latinos. É complicado.

Outro aspecto muito interessante da língua são as palavras que trazem consigo alguma característica do povo como, por exemplo, o caso de "goedkoop", barato. Para nós, algo barato não significa necessariamente bom, aliás, na nossa concepção e na de várias outras línguas, barato significa de má qualidade como, por exemplo,  o "cheap" do inglês, que também é muito usado para dar um tom pejorativo às coisas: "cheap talk", conversa barata. E nós dizemos barato não só quando pagamos pouco por algo, como também quando  achamos que a qualidade da coisa é inferior. Já, o holandês descreve barato como "boa compra", "goed" significa bom, "koop", compra. Denunciando o modo de pensar nacional.

Mas a língua holandesa tem sua beleza. Uma das suas características mais interessantes é a sua concreção. Podemos praticamente "pegar" as palavras, de tão concretas que são. Por exemplo, "verhaal" significa história: "ver" (lê-se: fér) significa longe e "haal", do verbo "halen" significa buscar, ou seja, você tem que ir longe buscar o acontecimento e trazer para o presente. Há inúmeros exemplos como "woordenboek", "woorden", palavras, "boek", livro, ou seja, dicionário; "voorouders", "voor" antes, "ouders" pais, pais antes, ou seja, antepassados; "overheidsvoorlichtingsdienst", "overheid", governo, "voorlichting", informação, "dienst", serviço e os "s" servem como tracinhos. E por aí vai. E para quem ficou curioso, "hottentottententententoonstelling" significa exposição de tendas de um grupo primitivo da África do Sul, os "hottentoten". Então: "hottentotten", o grupo, "tenten", tendas, "tentoonstelling", exposição. Conseguir falar tudo isso numa palavra só não é só uma proeza, é um milagre. Esta concisão da língua demonstra a praticidade, a objetividade no pensar, ou seja, ir direto ao que interessa, sem rodeios.

Dizem que para se compreender um povo é necessário que se compreenda a sua língua.  E isso é uma grande verdade.

 

22/07//2008

 

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