*Itala Holanda é graduada em comunicação social e atuou profissionalmente em jornais cearenses. Em terras neerlandesas, redige esporadicamente, talvez para não perder o hábito ou simplesmente por teimosia.

Escultura animada

 Redação e fotos: Itala Holanda*

Thessia Machado transita entre o fazer escultórico e a arte de animação. De fato, ela traça hoje em dia uma linha tênue entre os dois mundos: o da tecnologia e o da prática da escultura. Vive e trabalha em Nova York e faz dos cartuns o seu ganha-pão. E é no seu
atelier, virado para a selva de pedra nova-iorquina, que a brasileira de 37 anos pensa e produz. No circuito Nova York-Flórida-Brasil foi sendo elaborada e, por fim, surgiu a exposição Grown , que veio parar na Holanda e integrou-se à Huisrechts, espaço dedicado à arte contemporânea e experimental, sediado
em Amsterdã sob o comando dos brasileiros Célio Braga e Hércules Martins. No seu ardor produtivo, Thessia trabalhou em cima do tema contaminação, dando à exposição um certo sentido biológico e orgânico e interferindo e dialogando com o espaço em questão. Além disso, a artista explorou o papel como objeto escultórico, conferindo-lhe o status de nobreza. A praticidade de tal decisão facilitou-lhe a vida: ela carregou a exposição inteira na mala de viagem. E por fim, animou as peças com o poder da tecnologia, sem o
entrave da temporalidade e ousando quebrar a linearidade da narrativa. Aqui, passeou o olho pela cidade e adorou a receptividade do público holandês. Na despedida da sua temporada, pude fotografar a sua fluência gestual e, em seguida, reproduzir o seu pensamento artístico e toda a idéia de concepção
da mostra que, reunindo esculturas e vídeos, passou com elogios pela cidade.

A idéia de uma montagem – “Esta exposição foi preparada especificamente para este espaço. A proposta do Célio e do Hércules era, desde o começo,
ter um trabalho que se integrasse à arquitetura do lugar. Eu já havia visitado a galeria no ano passado, tinha visto fotos e o Célio (Braga) me mandou um planta baixa. Eu realmente procurei integrar meus trabalhos ao espaço, utilizando as características específicas das paredes, as suas falhas e reentrâncias. O buraco no chão da ventilação, por exemplo, foi um elemento que me deu muitas idéias para aproveitar essa característica incomum do espaço”.

Uma escultura convidativa – “A peça de abertura da mostra, que eu chamei de Guest, foi pensada para ser inserida na ventilação da galeria e funcionou muito bem. Era uma coisa única. Eu queria e pude brincar em cima dessa brecha, desse buraco. Inicialmente a impressão que dava era cômica. Todas as pessoas que se deparavam com a obra, abriam um sorriso. E isso foi uma reação muito especial e positiva para meu trabalho. Eu vi que ao iniciar a experiência de olhar esta mostra, a pessoa já entrava num estado aberto para o resto do trabalho. Essa peça teve uma função bem forte de abrir a exposição com um sentimento positivo, alegre, curioso”.

O diálogo entre o trabalho e o espaço – “O processo em si de preparar e montar uma exposição tem um valor incrível para o artista porque levanta várias questões de como lidar com o espaço. Tem a questão de como os trabalhos funcionam uns com os outros - esse diálogo das peças entre si e das peças com o espaço. E existe ainda a questão de como as pessoas utilizam o espaço. É interessante ver como elas transitam e se relacionam com o trabalho. Esta é uma experiência fortíssima e importantíssima para o artista”.

A contaminação como tema – “A exposição inteira trabalha em cima do tema contaminação. De um organismo a se integrar e a contaminar o espaço de um outro organismo. Uma das peças recebeu o nome de “Culture” porque existe a definição biológica da palavra , que é um organismo que se desenvolve num meio propício. Essa peça funciona como se a parede se fundisse a ela, se descascasse e se modificasse, fazendo essa conexão do material com o espaço. A peça chamada "Guest", que significa convidado, assemelha-se a um cogumelo e, como tal, é um coisa que cresce espontaneamente, interfere e modifica o espaço, ao mesmo tempo, que é interferido e modificado por ele. Quer dizer, existe essa questão da arte num espaço propício. E foi dessa forma que eu me aproximei desse projeto”.

O corpo humano como um invólucro – “A série "Hung", que quer dizer pendurado, é outra peça interessante. Ela se relaciona ao corpo, no sentido de que o corpo é um contêiner, que possui certos elementos aos quais a gente não tem acesso. Mas que, ao mesmo tempo, se pode vislumbrar. Existe, de fato, uma transparência na nossa pele, que revela e que, ao mesmo tempo, esconde o nosso recheio. De um outro ângulo, você também pode ter acesso a esse miolo. Eu explorei nesta série a questão de como um invólucro é alterado e deformado, de acordo com o que há dentro. E associo isso à questão do corpo porque, volta e meia, em situações geralmente não muito positivas, a gente tem acesso aos órgãos, ao funcionamento interno do nosso corpo”.

Simplicidade do material – “Com relação à mostra existiu o lado simples, básico e prático na escolha do material, que é leve e compacto. Eu costumo fazer um estudo quase sistemático das possibilidades de cada material e sempre quero explorar o limite deles. No caso do papel, este é geralmente usado como suporte passivo em desenho, mas eu queria explorar outras fronteiras do papel. Daí eu pensei em fazer dele um objeto escultórico, com uma presença física muito forte. Em arte, geralmente você tenta esquecer o papel, mas eu queria trazê-lo justamente para a frente desta exposição. Eu queria revelar o poder e a nobreza dele. Além disso, trazer esta exposição de Nova York para cá, foi fácil: ela coube inteira dentro da minha mala.”

Vídeos animando a mostra – “O vídeo é um instrumento ilustrativo, mas é também uma forma de tornar a mostra viva, tem mesmo essa função de animar. Com as esculturas, a questão da temporalidade é condensada e congelada. Você está vendo ali um instante do processo e você fantasia esse processo, ou seja, a galeria sendo tomada por esses elementos. Mas esta é uma imagem congelada. Com os vídeos eu tenho a possibilidade de criar esses movimentos de um forma real. Eu faço aí uma distensão desse elemento da temporalidade”.

Sob a influência da tecnologia - “Eu trabalho com desenho animado comercial há quase 13 anos. Eu tenho essa formação técnica, essa ligação com o computador. Eu sou super curiosa e tenho uma grande afinidade com esse tipo de raciocínio tecnológico. Para fazer realizar esse trabalho, eu fiz uma síntese de materiais muito simples – arame, corda, fio de náilon -, que não têm na hierarquia da arte uma posição muito alta, e utilizei tecnologia de ponta para manipular esses materiais. A idéia é causar essa estranheza, essa incerteza se o resultado é uma coisa sintética, se é inteiramente feito no computador ou se completamente real e simplesmente fotografada. Eu estou justamente brincando com essas questões da percepção do que é ou não real, mas muito atrás da solidez dos materiais".

Casando escultura com linguagem de animação – “Durante muito tempo eu mantive o meu know-how de tecnologia separado da minha prática da escultura. Só de alguns anos para cá, eu passei a querer combinar essas duas coisas.Ou seja, unificar a minha escultura com esse background, com essa formação técnica. No desenho animado, geralmente eu trabalho com cartuns, que é o desenho animado de televisão, essa coisa bem tradicional. Mas eu quis explorar um tipo de animação mais experimental, sem abandonar a minha prática da escultura. Eu eliminei um estágio, que seria o desenho, e passei a animar objetos reais. Desta forma eu consigo realmente aproximar da escultura essa tecnologia. Daí fica bem presente o elemento físico na animação”.

A quebra da narrativa – “Na animação existe sempre a coisa da história, de uma certa linearidade, de uma narrativa. Isso era algo que eu queria quebrar também. Eu não quero que você, como espectador, seja obrigado a seguir um processo linear assistindo aos vídeos em dois minutos, cinco minutos ou meia hora. Você tem a liberdade completa como audiência da sua relação com o trabalho. Você não é forçado a uma estrutura, essa coisa de ter que esperar a história se desenrolar, até ver no final o que acontece. Não tem esse prêmio no final. O prêmio é o momento, é imediato. A relação é direta. Isso é uma coisa também muito recente em vídeo-arte, ou seja, a quebra da narrativa”.

Fronteiras cruzadas – “Cada vez mais artistas estão cruzando as fronteiras de técnica e mídia. Eu acho que existem poucos artistas com formação tradicional em desenho animado, que carreguem também uma formação e uma estética fundamentalmente baseadas na prática artística contemporânea. Tem muito artista que faz desenho animado e tem muita gente de desenho animado fazendo vídeo-arte. Por outro lado, essa fronteira entre arte contemporânea e animação é um meio muito rico. E eu acho que ainda tem bastante espaço para ser explorado".

Um câmara na mão e um computador – “Dos anos 70 para cá, o vídeo-arte tem evoluido na sua linguagem, talvez por causa dos avanços da tecnologia. Há quatro anos, para produzir esse vídeo, eu teria que alugar uma câmera de cinema, luz, uma mesa de edição e laboratório. Hoje em dia, eu faço com uma câmera digital comum e meu computador doméstico. Tal facilidade abriu esse campo para muita gente. Eu acho que a tendência é, cada vez mais, existirem artistas fazendo uso disso, porque além de ser muito fácil, se consegue uma qualidade muito boa”.

Saudades do Brasil – “Um dos vídeos por mim produzidos, que eu chamei de long day, é uma meditação sobre o fato de estar em Nova York e ser brasileira. De estar nesse grande centro urbano, agressivo, metropolitano e sentir saudades do Brasil, principalmente depois de um longo inverno. Nesse vídeo eu impus a sequência de um pôr-do-sol em Nova York e a visão de prédios, quer dizer, uma coisa bem urbana. Um outro fragmento traz à memória o mar e essa saudade bem específica da relação com o mar, que nós da costa temos. Tem a coisa do contato e do conforto físico que o mar proporciona. Esse vídeo é uma fantasia de querer tornar Nova York uma coisa mais sensual para nós, brasileiros”.

Afinidades estéticas – “Eu tenho uma afinidade estética muito grande com o Norte da Europa, que tem uma tradição do modernismo. Eu diria que é uma estética um pouco mais enxuta, talvez mais do que a das Américas ou até mesmo a do Brasil. Eu me identifico com esse tipo de estética, com essa identidade formal”.

O público e a mostra – “A exposição aqui teve uma reação bastante positiva do público holandês. O vernissage foi divertido e prestigiado. Muitas pessoas vieram falar comigo, querendo saber um pouco mais sobre o trabalho. No sentido social, o público aqui é um pouco mais reservado do que nos Estados Unidos, onde moro atualmente, mas apesar de pouco efusivo, discerne muito bem".

Frio em Amsterdam, sol na Normandia – “Eu já estive duas vezes em Amsterdam. Agora eu fiquei curtindo a cidade, andando de bicicleta, visitando museus, galerias, livrarias e cafés - até porque toma-se muito café aqui. Nesse meio tempo eu passei uma semana em Paris. Fui visitar o meu pai, que mora lá. Daí nós pegamos um carro e fomos até a Normandia. E estava um tempo gostoso, até bem mais quentinho do que por aqui”.

Investimento na carreira – “Eu era ainda era uma garotinha quando decidi que ia ser artista. Quando tinha 18 anos fui estudar Belas-artes nos EUA. Lá fiz um curso de desenho animado na faculdade e assim que me formei já comecei a trabalhar em animação. Mas eu sempre mantive um atelier, onde desenvolvia o meu trabalho artístico. Por vários anos, eu não investi na minha carreira profissional em arte porque estava, recém-formada, lutando para sobreviver em Nova York. E eu fiquei trabalhando em desenho animado full-time durante vários anos. Daí chegou uma hora em que resolvi investir na minha carreira. Então, eu tirei um sabático da animação e arrumei um atelier melhor. Isso faz uns quatro anos”.

Da pintura à escultura – “Eu comecei fazendo pintura na faculdade. Eu acredito que é importante para o artista ter um embasamento formal, teórico, acadêmico. Eu fiz gravura, eu fiz pintura e é essa experiência que dá segurança e liberdade para quebrar todas as regras. O meu processo de transição da pintura para a escultura foi demorado e super pessoal. Eu acho que foi mesmo a procura de uma linguagem que mexesse comigo. O curioso é que eu comecei a pintar em madeira e depois passei a construir coisas mixando a madeira com materiais achados. Mas aí chegou uma hora em que eu não queria mais isso. Eu construía as estruturas e me tocava que não precisava pintar mais. Foi, então, que eu comecei realmente a fazer esculturas. Foi um processo bem claro".

Passagem pela Flórida - “Eu fiz uma residência na Flórida, em outubro passado, com Vick Muniz, um artista plástico brasileiro que também mora em Nova York. Nós passamos três semanas num centro de arte perto de Orlando. Ele era o artista convidado e eu a artista recomendada por ele. Esta foi uma época incrivelmente produtiva e inspiradora para mim. Foi onde eu concebi a peça Culture e onde eu desenvolvi e aperfeiçoei a peça Guest, que foi iniciada no Brasil. E Muniz me deu muita força e me encorajou muito a continuar nesse caminho do vídeo. Além do mais, ele tem sido um bom guia de certas coisas da parte do business da carreira, tipo como lidar com galerias e outros percalços do gênero".

Arte x dinheiro & mercado brasileiro – “Eu vivo do desenho animado para fazer dinheiro. Mas eu estou começando a ter uma entrada maior no mercado. Ainda não há projetos de exposições no Brasil, mas estou em contato com uma publicação do Sul, que se chama "Cartaz". Por enquanto, tenho investindo mais na Europa e nos EUA porque acho que facilita mais a entrada no Brasil. Um currículo maior e mais contatos, abrem portas”.

Grown: sob o olhar da audiência

(por Itala Holanda*)

Eu vi Grown bem de perto e levei para casa minha visão muito particular e muito especial também. O trabalho de Thessia é extremamente delicado. De uma delicadeza que sobrepuja a própria leveza do material que ela escolheu para as suas incursões escultóricas – o papel. O resultado é brilhante, transpira luminosidade, eu diria. A textura do material nos remete à imagem de fissuras em cristais de quartzo. As peças, imaculadamente brancas, puras.

A escultura de abertura da mostra é um convite e uma surpresa. Nela, peças de papel dançam alegremente ao sabor do vento, sustentados e interligados por invisíveis cordões de náilon, feito folhas inocentemente arrastadas em dias de ventania. A imagem é irrestivelmente deliciosa e bela. Prende o olho do espectador.

Num outro ângulo, fungos brancos habitam as paredes da Huisrechts, confundido-se e fundindo-se à ela. A parede é moldura, abrigo, ninho. As peças esculturais, hospedeiros. Como numa linguagem simbiótica, um não consegue existir sem o outro. E há simbologia de movimento. As peças também podem sugerir aves em vôo de arribação.

Já na série Hung, a artista resguarda segredos. Ou melhor, deixa-os quase à flor da pele. Não, não são caixinhas de Pandora.

Vídeos ilustram a mostra e dão vida à arte estática, revelando a outra faceta da artista. Há muito experimentalismo, quase nenhuma rigidez e zero de linearidade. Eu que sou fã confessa dos filmes de animação, costumo imaginá-los sempre na esteira da ironia, da brincadeira e da fantasia. Mas e o mundo real? Thessia nos conduz ao universo dos cartuns, mas subverte completamente o processo. Na escultura, sua criação independe do desenho. Ela parte do real para o imaginário. Tacada certeira a da moça.

E quanto ao branco do papel e do espaço? O branco é quente ou frio? É quentíssimo! Aconchega, acalma, irradia. Que beleza de exposição!


Thessia e a escultura "Guest"

 

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